POSICIONAMENTO ABRASCO
O amplo debate a cerca do aborto legal, provocado pelo PL 1904, deixou em evidência a falta de políticas públicas eficazes para garantir este direito a meninas e mulheres de todo o país. Por isto, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) enviou um ofício ao Ministério da Saúde (MS), solicitando informações sobre a abrangência do acesso ao aborto legal no país.
Dados indicam que os serviços para interrupção legal de gravidez existem em apenas 3,6% do território brasileiro, deixando mais de 37,5 milhões de mulheres em idade fértil sem acesso ao serviço na região onde vivem. O documento solicita a realização e divulgação de um mapeamento atualizado sobre os serviços de aborto legal de referência, com dados oficiais sobre os equipamentos registrados e aqueles realmente operantes. Além disso, na propõe a criação de um plano nacional para que este direito seja acessível a todas às meninas e mulheres que se enquadrarem em alguma das situações legalmente previstas, com ampliação e descentralização dos serviços de referência para todo o território nacional.
Confira na íntegra abaixo:
Exma. Sra. Ministra da Saúde,
Cumprimentando-a cordialmente, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco vem por meio do presente ofício solicitar informações acerca da garantia do acesso ao aborto legal nos municípios brasileiros.
Diante do contexto de ataques aos direitos adquiridos das meninas e mulheres brasileiras pelo campo político conservador no legislativo, este ofício busca recolher informações sobre a garantia do acesso ao aborto legal, conforme as previsões legais do ordenamento jurídico nacional.
A repercussão em torno do Projeto de Lei no 1904/2024, que visa equiparar a homicídio o aborto após 22 semanas de gestação, mesmo nos casos de interrupção de gravidez em decorrência de estupro, demonstrou que a sociedade brasileira não concorda em retroceder nas previsões legais já estabelecidas para a garantia do aborto legal. Segundo enquete do site da Câmara dos Deputados Federais sobre a proposição, 88% dos votantes se posicionaram totalmente contra o projeto, enquanto apenas 12%, totalmente a favor. E uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que dois em cada três brasileiros são contrários a esta mudança legislativa. Além disso, manifestações de grandes proporções se espalharam por diversos estados do país.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) manifestou repúdio a tal projeto, assim como organizações como Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), Conselho Federal de Serviço Social (CFSS), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Anis Instituto de Bioética, Grupo Curumim, Criola, Nem Presa Nem Morta, além de outras organizações que compõem a campanha “Criança Não é Mãe”.
A repercussão contrária ao projeto não se limitou ao apoio consolidado de organizações da sociedade civil, instituições de ensino e pesquisa, categorias profissionais da saúde e da população ao aborto legal já preconizado. A ampliação do debate público sobre o tema expôs também a inexistência de políticas públicas capazes de garantir de fato e com equidade este direito às meninas e mulheres de todo o país. Diversas reportagens na imprensa brasileira veicularam dados de uma pesquisa nacional1 que indica que os serviços para interrupção legal de gravidez existem em apenas 3,6% do território brasileiro, deixando mais de 37,5 milhões de mulheres em idade fértil sem acesso ao serviço na região onde vivem.
A pesquisa encontrou, ainda, serviços registrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) como Serviços de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual ou Serviços de Referência para Interrupção da Gravidez nos Casos Previstos em Lei que, no entanto, não realizam procedimentos de interrupção. Outros levantamentos apontam que um terço dos estados brasileiros possui um ou nenhum serviço de aborto legal cadastrado pelo CNES, sendo estes os que menos dão acesso ao procedimento e, entre eles, estão justamente os territórios com as maiores taxas de estupros por 100 mil mulheres. Um cenário devastador, que demonstra que não é apenas o PL no 1904/2024 que afronta o acesso ao direito ao aborto legal no Brasil.
Ante o exposto, estamos diante de uma oportunidade ímpar de enfrentar tais mazelas e avançar na garantia do direito à interrupção da gravidez para os casos de violência sexual, risco de vida para a gestante e anencefalia fetal. Tendo em vista o contexto de desafios, o compromisso da Abrasco com o direito à saúde e a defesa do SUS, de sua universalização, equidade e integralidade, bem como os direitos preconizados pela Lei de Acesso à Informação, vimos por meio deste ofício solicitar ao Ministério da Saúde que:
1 – Realize e divulgue em até 90 dias um mapeamento atualizado sobre os serviços de aborto legal de referência, com dados oficiais sobre os equipamentos registrados e aqueles realmente operantes.
2 – Operacionalize um plano nacional para que este direito seja acessível a todas às meninas e mulheres que se enquadrarem em alguma das situações legalmente previstas, com ampliação e descentralização dos serviços de referência para todo o território nacional.
Para o item 2 de nossa solicitação, colocamos a Abrasco, sobretudo nosso Grupo Temático de Gênero e Saúde, à disposição do Ministério da Saúde para apoio técnico e diálogo. Sugerimos de antemão que este plano considere tanto as lacunas na distribuição territorial dos serviços, como priorize o aumento do acesso ao aborto legal sobretudo nos territórios com altos índices de violência sexual; que articule estratégias de campanhas de informação e de educação sexual; que leve em conta iniciativas de qualificação da atenção ao aborto legal já em curso no país, como a utilização de telessaúde por serviços de referência; que inclua a Atenção Primária em Saúde (APS) no escopo das ações de ampliação do acesso, inclusive em atenção ao que vem sendo recomendado pela Organização Mundial de Saúde; e que revise a atual regulamentação restritiva ao medicamento misoprostol para garantir seu uso ambulatorial, conforme as melhores evidências científicas, potencializando uma efetiva ampliação do acesso ao aborto legal no país.
Que sejam ações inspiradas pela própria história do SUS e de seus trabalhadores e trabalhadoras que, nos anos 1990, no contexto da discussão sobre a descentralização das ações e serviços de saúde pública, convocaram a “ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. Esta é a coragem que reivindicamos do Ministério da Saúde, hoje, em relação ao aborto legal.
Na expectativa de retorno, seguimos à disposição para quaisquer esclarecimentos e aproveitamos o ensejo para renovar votos de elevada estima e consideração.
Atenciosamente,
Rosana Onocko Campos
Presidente da Abrasco
1 “O que os dados nacionais indicam sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019?”, de Marina Gasino Jacobs e Alexandra Crispim Boing, publicado no periódico Cadernos de Saúde Pública, no 37, de dezembro de 2021.
Ser um associado (a) Abrasco, ou Abrasquiano(a), é apoiar a Saúde Coletiva como área de conhecimento, mas também compartilhar dos princípios da saúde como processo social, da participação como radicalização democrática e da ampliação dos direitos dos cidadãos. São esses princípios da Saúde Coletiva que também inspiram a Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde, o SUS.
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