Privacidade em xeque: o caso Meta e a decisão da ANPD – ConJur

é advogada e professora nas áreas de direito digital ESG e cannabis law mestra em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos bolsista Capes e graduada em direito pela mesma universidade.
5 de julho de 2024, 19h34
A recente decisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) [1] de suspender a nova política de privacidade da Meta, empresa proprietária do WhatsApp, Instagram e Facebook, traz à tona um debate crucial sobre os limites da inteligência artificial (IA) na vida dos indivíduos. A decisão, publicada no Diário Oficial da União no último dia 2, visa a impedir que a Meta utilize dados dos usuários para treinar suas ferramentas de IA, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. A ANPD aponta falhas na transparência, inadequação da base legal e riscos significativos para crianças e adolescentes como principais motivos para a medida.

freepik
facebook O cerne da questão reside na tensão entre inovação tecnológica e proteção de dados pessoais. A Meta, ao coletar informações compartilhadas por seus usuários para treinar modelos de IA generativa, ultrapassa fronteiras que tocam diretamente a privacidade e as liberdades individuais. Embora a empresa argumente que sua política é transparente e em conformidade com as leis de privacidade brasileiras, a análise da ANPD revela uma realidade diferente. A falta de clareza nas informações fornecidas aos usuários, obstáculos no exercício dos direitos dos titulares e a inadequação da base legal são indícios de que a Meta não priorizou a proteção de dados pessoais de seus usuários.
Neste ponto, é particularmente necessário destacar que o potencial da IA não deve ser desconsiderado. É inegável que essa tecnologia possui a capacidade de revolucionar diversos setores, oferecendo soluções que podem melhorar significativamente a vida dos indivíduos, desde a otimização de processos até avanços em áreas críticas como saúde, educação e segurança. A questão aqui delineada, entretanto, não está na utilização da IA em si, mas na forma como essa tecnologia é desenvolvida e implementada, especialmente quando envolve o tratamento de dados pessoais, especialmente porque a decisão da ANPD destaca a importância de equilibrar o avanço tecnológico com a necessidade de proteger a privacidade e os direitos dos indivíduos.
Quando o desenvolvimento e a implementação da inteligência artificial se alicerçam na exploração de dados pessoais sem o devido consentimento ou transparência, emergem preocupações legítimas e graves sobre a privacidade e a liberdade dos indivíduos. É crucial que o tratamento de dados pessoais deva ser rigorosamente acompanhado por salvaguardas robustas e eficazes, destinadas a garantir a proteção integral dos direitos dos titulares. É imperativo, neste caso, que as práticas de coleta e uso de dados pessoais sejam pautadas por princípios éticos sólidos e pelo respeito às normas legais vigentes, assegurando que os usuários tenham clareza e controle sobre como suas informações são utilizadas. Afinal, qualquer desvio desse padrão não apenas compromete a confiança dos usuários nas plataformas digitais, mas também coloca em risco as liberdades fundamentais que devem ser resguardadas em uma sociedade democrática.
No caso específico da Meta, a ANPD salienta que inúmeros usuários compartilham seus dados nas plataformas com a expectativa clara de interagir com amigos, comunidades próximas ou empresas de interesse, e não com a intenção de contribuir para o treinamento de sistemas de inteligência artificial. Tal expectativa, profundamente enraizada na confiança que os usuários depositam nessas plataformas, não pode ser desconsiderada ou negligenciada.
A confiança é um pilar fundamental na relação entre usuários e plataformas digitais, e deve ser preservada através de práticas de tratamento de dados que respeitem incondicionalmente a privacidade e a liberdade dos indivíduos. É essencial que as empresas implementem políticas transparentes e éticas, assegurando que os dados pessoais sejam utilizados exclusivamente para os fins para os quais foram originalmente coletados, sem subterfúgios ou manipulações que possam comprometer a integridade e os direitos dos usuários.

Spacca
A decisão da ANPD também levanta uma discussão sobre o uso de dados pessoais de crianças e adolescentes. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) [2] é clara ao estipular que o tratamento desses dados deve ser realizado com o melhor interesse da criança ou adolescente em mente, acompanhado de medidas de mitigação de risco. A análise preliminar da ANPD indica que a Meta não adotou as salvaguardas necessárias, expondo um grupo vulnerável a riscos significativos.
A Meta, em sua defesa, alega que [3] a decisão da ANPD representa um retrocesso para a inovação e competitividade. No entanto, essa visão desconsidera a importância de um desenvolvimento tecnológico que respeite os direitos fundamentais. A inovação não pode ser alcançada às custas da privacidade e das liberdades individuais. Pelo contrário, deve ser orientada por princípios éticos e legais que garantam a segurança e a confiança dos usuários.
O caso da Meta é um exemplo emblemático de como as autoridades reguladoras desempenham um papel crucial na proteção de dados pessoais e na manutenção do equilíbrio entre inovação tecnológica e direitos individuais. A ANPD, ao tomar uma medida preventiva, busca garantir que a implementação de novas tecnologias não comprometa a privacidade dos cidadãos, demonstrando, assim, uma postura proativa e essencial para estabelecer um ambiente digital seguro e confiável.
Em última análise, a questão central é até que ponto a IA pode entrar na vida das pessoas sem comprometer suas liberdades. A resposta reside na criação de políticas e regulamentações que coloquem a proteção de dados pessoais no centro do desenvolvimento tecnológico. Somente assim será possível garantir que a inteligência artificial contribua para o progresso humano sem infringir direitos fundamentais. A decisão da ANPD é um passo importante nessa direção, garantindo que a verdadeira inovação sempre respeite a dignidade e a privacidade de cada indivíduo.
 
[1] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-07/anpd-suspende-uso-de-dados-no-facebook-e-instagram-para-treinar-ia
[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm
[3] Disponível em: https://exame.com/inteligencia-artificial/governo-proibe-meta-de-usar-dados-de-brasileiros-para-treinar-ia/
é advogada e professora nas áreas de direito digital, ESG e cannabis law, mestra em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bolsista Capes e graduada em direito pela mesma universidade.
Ver todos os posts
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou em sua página oficial uma notícia relevante,…
No último dia 13 de março, a OpenAI lançou a mais recente versão de sua ferramenta…
Um dos desafios mais candentes de regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA), atualmente em discussão…
Os recentes avanços nas tecnologias baseadas em IA têm se dado no campo da inteligência artificial…
No último dia 10 de junho, a Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés (CNIL), autoridade…

Consultor Jurídico 2024. Todos os direitos reservados.
ISSN 1809-2829

source


Comments

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *